O Dever Constitucional de Continuidade Regulada: Aplicação do Artigo 153.º da Lei n.º 17/24 no Sector de Jogos em Angola
CAZOS Justice & Innovation Academy – Núcleo de Regulação e Compliance Financeiro
Luanda, Outubro de 2025
Resumo Executivo
A Lei n.º 17/24, publicada a 28 de Outubro de 2024, instituiu o novo regime jurídico da actividade de jogos em Angola, fixando no artigo 153.º um prazo de 180 dias – até 26 de Abril de 2025 – para a adaptação dos operadores existentes. A inércia do Instituto de Supervisão de Jogos (ISJ) em emitir Títulos Habilitantes Transitórios (THT) e aprovar regulamentos complementares configura uma omissão qualificada, violando os princípios constitucionais da boa administração (CRA, art. 6.º), da legalidade (CRA, art. 198.º; CPA, art. 5.º) e da continuidade regulatória.
Esta omissão compromete a confiança institucional, interrompe fluxos fiscais e fragiliza os mecanismos de Prevenção e Combate ao Branqueamento de Capitais, Financiamento do Terrorismo e Proliferação de Armas de Destruição em Massa (BC/FT/ADM). Tal lacuna afecta o cumprimento das obrigações internacionais de Angola perante o GAFI/FATF, o ESAAMLG e as Convenções de Viena (1969), Palermo (2000) e Mérida (2003), expondo o país a riscos de avaliações negativas.
O artigo 153.º é um pilar de estabilidade jurídica e económica, garantindo a transição entre regimes sem rupturas. Recomenda-se:
- Emissão imediata de THT num prazo de 25 dias úteis;
- Criação de uma Certidão de Operacionalidade para facilitar o onboarding bancário;
- Aprovação de um Memorando de Entendimento tripartido ISJ–BNA–UIF;
- Abertura de concursos públicos nos termos do art. 87.º.
Estas medidas asseguram a boa regulação de jogos em Angola, reforçam o compliance financeiro e posicionam o país como jurisdição confiável no panorama internacional.
I. O Vácuo Regulatório e o Dever de Boa Administração
O Estado de Direito não tolera vazios normativos que comprometam a continuidade de sectores económicos legalmente constituídos. A Constituição da República de Angola (CRA), no art. 6.º, consagra o princípio da boa administração, exigindo da Administração Pública actuação eficaz, proporcionada e transparente. O art. 198.º submete-a ao império da lei, enquanto o art. 75.º estabelece a responsabilidade civil do Estado por actos ou omissões danosos.
A omissão do ISJ em operacionalizar o art. 153.º da Lei n.º 17/24 constitui uma violação positiva do dever de boa administração. A inércia, ao ultrapassar o prazo de 26 de Abril de 2025 sem emissão de THT ou regulamentos complementares, configura ilicitude por abstenção, com impactos sistémicos:
- Perda de receitas fiscais;
- Insegurança contratual;
- Fragilização dos controlos BC/FT/ADM.
Como refere Freitas do Amaral, “a Administração não tem o poder de nada fazer; a inércia é, em si mesma, uma forma de ilegalidade quando compromete a regularidade do serviço público” (Curso de Direito Administrativo, vol. I, Almedina, 2015). A jurisprudência comparada reforça que o dever de boa administração inclui a continuidade regulatória, sendo a omissão de actos necessários à execução de uma lei uma forma de ilicitude passível de responsabilização nos termos do art. 75.º da CRA.
No sector de jogos, onde a regulação se articula com a política fiscal e o combate ao branqueamento de capitais, a inércia administrativa representa uma falha grave na protecção do interesse público económico.
II. O Dever Internacional de Legislar e Regulamentar
O art. 13.º da CRA integra os tratados internacionais ratificados na ordem jurídica interna, impondo a sua execução de boa-fé. A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (1969), nos arts. 26.º e 27.º, consagra o princípio pacta sunt servanda, vedando a invocação do direito interno para justificar incumprimentos. Os Artigos sobre a Responsabilidade do Estado por Actos Internacionalmente Ilícitos (CDI, 2001) estabelecem que a omissão legislativa ou administrativa que inviabilize o cumprimento de um tratado constitui violação internacional.
Angola, enquanto Estado Parte das Convenções de Palermo (2000, arts. 6.º e 7.º) e de Mérida (2003, arts. 14.º e 52.º), comprometeu-se a implementar medidas de supervisão em sectores de risco, como o dos jogos. A ausência de regulamentação complementar à Lei n.º 17/24 compromete essas obrigações, expondo o país a avaliações negativas pelo GAFI/FATF e pelo ESAAMLG. O relatório ESAAMLG (2022/2023) identificou como fragilidade a execução incompleta da supervisão de entidades não financeiras designadas (DNFBPs), incluindo operadores de jogos.
Como observa Vasco Pereira da Silva, “a omissão da Administração no dever de executar a lei compromete a juridicidade do Estado e destrói a confiança que constitui o cimento da ordem internacional” (O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, 2009). A continuidade regulatória, assegurada pelo art. 153.º, é essencial para alinhar Angola com os padrões internacionais de compliance financeiro.
III. O Dever de Decidir e a Vinculação Administrativa
O Código do Procedimento Administrativo (CPA, Lei n.º 31/22) impõe, nos arts. 164.º a 166.º, o dever de decidir expressamente num prazo razoável (60 dias, prorrogável uma vez). O silêncio administrativo prolongado converte-se em acto tácito, passível de impugnação judicial. Como ensina Celso Antônio Bandeira de Mello, “a omissão administrativa que inviabiliza o exercício de direitos é, em si, um acto de desvio de finalidade” (Curso de Direito Administrativo, Saraiva, 2018).
A suspensão indefinida de processos de licenciamento pelo ISJ, sob pretexto de “validação superior”, carece de amparo jurídico. A não aplicação do art. 153.º constitui omissão decisória ilícita, violando o princípio da vinculação administrativa. O Acórdão n.º 327/12 do Tribunal Supremo reconhece que a omissão administrativa que cause prejuízo a operadores económicos gera responsabilidade do Estado.
Para garantir eficácia, recomenda-se a adopção de um Service Level Agreement (SLA) interno de 25 dias úteis:
- 5 dias para verificação documental;
- 15 dias para instrução técnica;
- 5 dias para decisão e emissão do THT.
Esta medida, inspirada nas boas práticas da OCDE, reforça a previsibilidade e a transparência, alinhando a Administração com os padrões de boa governação.
IV. Exegese e Aplicação Operativa do Artigo 153.º
O art. 153.º da Lei n.º 17/24 é o eixo de transição entre o regime da Lei n.º 5/16 e o novo quadro jurídico. A sua interpretação deve ser literal, sistemática e teleológica, assegurando a continuidade económica e jurídica. A norma possui efeito directo e distribui-se em cinco segmentos normativos:
- Requisitos de elegibilidade (n.º 1, alíneas a–e): actualização estatutária, registo no ISJ, regularidade fiscal, certificação de sistemas informáticos e compliance BC/FT/ADM, em conformidade com as Recomendações 10, 20, 26 e 28 do GAFI.
- Canal único de prova (n.º 2): padronização documental para garantir equidade e reduzir arbitrariedade.
- Direito à continuidade (n.º 3): emissão do Título Habilitante Transitório (THT), com efeitos ex nunc, assegurando legalidade e segurança operacional até à adjudicação de novas licenças.
- Cessação automática (n.º 4): extinção do THT após concursos definitivos, com direito a indemnização por danos anormais (CRA, art. 75.º).
- Via excepcional (n.º 5): licença provisória para situações sanáveis com implantação física, reflectindo proporcionalidade administrativa.
Certidão de Operacionalidade: propõe-se a criação de um documento complementar, emitido pelo ISJ, contendo:
- Identificação do operador e do THT;
- Confirmação de regularidade fiscal e KYC;
- Certificação do sistema informático (integridade, logging, reconciliação);
- Evidência de políticas BC/FT/ADM;
- Auditoria técnica válida;
- Validade de 12 meses, renovável.
Este instrumento facilita o onboarding bancário, reduz riscos de de-risking e reforça a rastreabilidade financeira, alinhando Angola com práticas internacionais, como as da Autorité Nationale des Jeux (França). A implementação do art. 153.º pode seguir um cronograma de 25 dias úteis: 5 para verificação documental, 15 para instrução técnica e 5 para decisão. O silêncio administrativo além deste prazo activa o acto tácito, passível de impugnação judicial.
IV-A. Coordenação ISJ–BNA–UIF: Compliance e Estabilidade
A integridade financeira depende da articulação entre o ISJ, o Banco Nacional de Angola (BNA) e a Unidade de Informação Financeira (UIF), nos termos das Leis n.os 5/20, 11/24 e 14/21. A ausência de THT e Certidão de Operacionalidade inviabiliza o onboarding bancário, bloqueia reconciliações financeiras e aumenta o risco de de-risking por bancos correspondentes internacionais.
Recomenda-se a assinatura de um Memorando de Entendimento tripartido ISJ–BNA–UIF, prevendo:
- Partilha de listas de operadores certificados;
- Alertas de risco em tempo real;
- Prazos uniformizados de resposta (25 dias úteis);
- Certificação cruzada de compliance.
O modelo francês, em que a Autorité Nationale des Jeux colabora estreitamente com a autoridade financeira, demonstra a eficácia desta abordagem, garantindo supervisão efectiva e protecção do sistema bancário.
IV-B. Consequências da Falta de Licença na Cadeia de Fornecimento
O sector de jogos integra uma cadeia de valor complexa, abrangendo serviços financeiros, tecnológicos, jurídicos e de comunicação. A ausência de licenciamento provoca efeitos dominó:
- Prestadores de Serviços de Pagamento (PSPs): suspendem contas e liquidações por falta de due diligence;
- Bancos comerciais e correspondentes: encerram contas operacionais e recusam operações internacionais, exigindo prova de supervisão activa;
- Fornecedores tecnológicos: interrompem serviços de hosting, cloud e analytics devido à impossibilidade de certificação de sistemas;
- Auditores e consultores: cessam contratos por deveres de diligência, podendo reportar operações suspeitas à UIF;
- Agências de marketing: suspendem campanhas por risco de responsabilidade solidária na promoção de actividades não licenciadas.
Esta disfunção sistémica afecta a economia angolana, reduzindo receitas fiscais e comprometendo a confiança dos investidores. A execução do art. 153.º é essencial para restaurar a normalidade operacional.
V. Continuidade Automática e Ultra-Actividade dos Regulamentos
O art. 185.º do CPA consagra a ultra-actividade de regulamentos compatíveis, mantendo em vigor as disposições do Decreto Presidencial n.º 131/20 nas matérias técnicas não incompatíveis com a Lei n.º 17/24 (v.g., reconciliação financeira, auditoria, obrigações BC/FT/ADM). A recusa do ISJ em aplicar estas normas viola o princípio da legalidade (CPA, art. 5.º) e o dever de boa administração.
O Acórdão n.º 387/2019 do Tribunal Constitucional angolano reconhece a ultra-actividade como garantia de segurança jurídica, obrigando a Administração a assegurar transições normativas ordenadas. Como refere Marcello Caetano, “a ausência de regulamento não suspende a lei; exige maior diligência na sua execução” (Manual de Direito Administrativo, Almedina, 1991).
VI. Impacto Económico e Integridade Financeira
O vácuo regulatório gera perdas fiscais significativas, amplia a economia informal e eleva o risco soberano de Angola. A ausência de supervisão efectiva compromete a conformidade com as Recomendações 1, 10, 20, 26 e 28 do GAFI, afectando a classificação de efectividade nas avaliações do ESAAMLG (Immediate Outcomes 1, 3 e 4).
Exemplos internacionais ilustram o valor da continuidade regulatória:
- No Reino Unido, a transição pós-Gambling Act de 2005 aumentou as receitas fiscais e reduziu o mercado ilegal em 23 % num triénio;
- Em França, a Autorité Nationale des Jeux integrou supervisão tecnológica e protocolos interinstitucionais, fortalecendo a integridade financeira.
A activação do art. 153.º e a emissão de Certidões de Operacionalidade permitiriam a Angola evoluir de partial compliance para largely compliant nas matrizes do ESAAMLG, promovendo crescimento económico e credibilidade internacional.
VII. Responsabilidade do Estado e Tutela Jurisdicional
O art. 75.º da CRA estabelece a responsabilidade civil do Estado por omissões ilícitas que causem danos. A inércia do ISJ em executar o art. 153.º configura culpa de serviço, gerando prejuízos patrimoniais (lucros cessantes, perdas operacionais) e não patrimoniais (dano reputacional). O Acórdão n.º 897/2024 do Tribunal Constitucional reforça que o silêncio administrativo em matérias regulatórias viola o dever de continuidade.
O CPA (arts. 164.º–166.º) prevê mecanismos de reacção contra o silêncio, incluindo reclamação hierárquica e acção de condenação à prática do acto devido. Como afirma Marcello Caetano, “quem tem o dever de agir e não o faz, age ilicitamente” (Manual de Direito Administrativo, 1991). A tutela jurisdicional efectiva (CRA, art. 29.º) é o último garante da legalidade administrativa.
VIII. Boa-Fé Internacional e Confiança Jurídica
A boa-fé internacional, consagrada nos arts. 26.º e 27.º da Convenção de Viena, exige coerência entre norma e execução. Leis não aplicadas equivalem a violação do pacta sunt servanda. A omissão do art. 153.º compromete os compromissos de Angola nas Convenções de Palermo e Mérida, afectando a sua reputação em fóruns internacionais.
A confiança jurídica, reflexo interno da boa-fé, depende da previsibilidade das regras. A inércia administrativa converte essa previsibilidade em risco, desencorajando investimento. Como sublinha Celso Antônio Bandeira de Mello, “a boa administração é a base da confiança legítima” (Curso de Direito Administrativo, 2018). A execução do art. 153.º reforça a posição de Angola como jurisdição confiável, atraindo investimento sustentável.
IX. Conclusão Geral – Reforma com Continuidade
O art. 153.º da Lei n.º 17/24 é o coração operativo da reforma do sector de jogos em Angola. A sua execução efectiva – mediante emissão de THT, criação da Certidão de Operacionalidade, coordenação ISJ–BNA–UIF e aplicação do Decreto Presidencial n.º 131/20 – garante integridade, previsibilidade e sustentabilidade económica.
A continuidade regulada, consagrada no art. 185.º do CPA, é a pedra angular desta reforma. Reforma sem continuidade é ruptura; reforma com continuidade é Estado de Direito em acção. A CAZOS Justice & Innovation Academy recomenda:
- Emissão
de THT num prazo de 25 dias úteis; 2. Criação de uma Certidão de Operacionalidade padronizada; 3. Assinatura de um Memorando de Entendimento ISJ–BNA–UIF; 4. Abertura de concursos públicos nos termos do art. 87.º.
A boa regulação de jogos em Angola é um imperativo jurídico, económico e ético. Reforma, sim; vácuo, nunca.
Referências e Notas
- Lei n.º 17/24, de 28 de Outubro – Lei da Actividade de Jogos, art. 153.º.
- Constituição da República de Angola (CRA), arts. 6.º, 13.º, 29.º, 75.º e 198.º.
- Código do Procedimento Administrativo (CPA), Lei n.º 31/22, arts. 5.º, 164.º–166.º e 185.º.
- Leis n.os 5/20, 11/24 e 14/21 – BC/FT/ADM e Sistemas de Pagamento.
- Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (1969), arts. 26.º e 27.º.
- Convenção de Palermo (2000), arts. 6.º e 7.º; Convenção de Mérida (2003), arts. 14.º e 52.º.
- Artigos sobre a Responsabilidade do Estado por Actos Internacionalmente Ilícitos (CDI, 2001).
- ESAAMLG – Mutual Evaluation Report of Angola (2022/2023).
- Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. I, Almedina, 2015.
- Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, 2009.
- Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, Saraiva, 2018.
- Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Almedina, 1991.
- Jurisprudência: Acórdão n.º 327/12 (Tribunal Supremo), Acórdão n.º 387/2019 (Tribunal Constitucional), Acórdão n.º 897/2024 (Tribunal Constitucional).





